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  • Foto do escritorPedro Viana

É correto apreender veículos por dívidas de IPVA?

Analisando-se o principio do não confisco, fica claro que este corresponde a um dos limites do poder de tributar do Estado, pois protege o contribuinte de arbitrariedades e até mesmo de carga tributária superior a sua capacidade financeira, atingindo muito mais seu patrimônio do que deveria.

Veja-se, em excerto, a lição de Baleeiro[1] acerca das limitações constitucionais do poder de tributar:


“O problema reside na fixação de limites, expedidos os quais, esses objetivos, prometidos pela Constituição estariam irremediavelmente feridos. Tribunais estrangeiros já se inclinaram por critérios empíricos como o de 33% de renda, adotado pela Corte Suprema da Argentina. Mas esse problema é fundamentalmente econômico. E, à luz da economia, é fácil provar, até com a experiência, que, na tributação progressiva, se poderá atingir até quase 100% - do que há fartos exemplos – sem destruir a propriedade, impedir o trabalho, desencorajar a iniciativa ou ultrapassar a capacidade econômica.”


Cumpre assentar que a teoria do confisco, em especial o confisco tributário ou, noutro giro, do confisco através do tributo, é posta em face do direito de propriedade individual, que é garantido pela Constituição.

Se não é admissível a expropriação sem justa indenização, também se faz inadmissível a apropriação através de tributação abusiva.

Não obstante, o sistema jurídico do Brasil admite a tributação exacerbada, por razões extrafiscais e em decorrência do poder de polícia; por outro, o direito de propriedade, antes inatacável, com a CRFB/88, não é mais, eis que o subordina a garantia da chamada função social da propriedade.

Em vistas dos direitos fundamentais (= direito a propriedade e sua função social) – notadamente não absolutos entre si –, deveria existir, para revestir de legitimidade a dinâmica impeditiva e predatória cultivada pelo Estado através da retenção do veículo automotor (como preceitua o CTB 232), robusta razão jurídica de fundamento constitucional a impor tamanho desbarato ao direito de propriedade.

No entanto, cinge saber que não há óbice suficientemente capaz de transpor simultaneamente as garantias do direitos de propriedade do contribuinte e a vedação constitucional do efeito de confisco, sobretudo, quando ausentes elementos indissociáveis do Estado Democrático de Direito como a ampla defesa, o contraditório expandido[2], e o devido processo legal.

Isso porque é simples verificar que na qualidade de contribuinte, este também é titular subjetivo de todos os direitos e garantias fundamentais inerentes a todos os indivíduos[3].


Roque Carrazza[4], de maneira complementar, associa o princípio do impedimento da tributação para efeito de confisco com o princípio da capacidade contributiva, salientando que tal princípio exige do legislador equilíbrio quando da edição de norma tributária, com vias de evitar injustiças.

Cabe aqui colacionar trecho do renomado tributarista, quando: “[...] os recursos econômicos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas das pessoas (mínimo vital), garantidas pela Constituição, especialmente nos seus arts. 6º e 7º (alimentação, vestuário, lazer, cultura, saúde, educação, transporte, etc...), não podem ser alcançados pelos impostos.”

Assegurados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao longo de todo seu texto, é seguro que todos os direitos trazem como alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana, por este motivo, evidencia-se que o Estado não pode violar a dignidade do contribuinte, lhe ferindo com injustiça fiscal, e deixando de garantir sem embaraço, seu direito à propriedade, a liberdade de locomoção em tempos de paz, devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Com nítida incidência tributária pois, sendo seu critério objetivo único e exclusivo o de “possuir um veículo automotor”, para que o tributo exista, é necessário a propriedade sobre um veículo automotor – grande incongruência prática se materializa no sentido de que o recolhimento do veículo sob o fundamento único de atraso no pagamento do Imposto, que é exatamente o fato gerador do tributo, retira-se a posse, interferindo nos direitos inerentes a propriedade sem deferência à qualquer procedimento executivo – tolhendo o proprietário de veículo automotor do livre e pleno exercício de sua propriedade a menoscabo das garantias constitucionais acima vergastadas.

Colha-se ainda, ad argumentadum tantum, a incorrigível lição de Gladston Mamede[5] quando:

“A rigor, portanto, o tráfego pelas vias terrestres depende de licença anual, e essa, por seu turno, está vinculada ao recolhimento do IPVA – Imposto Sobre Propriedade De Veículos Automotores. [...] as disposições anotadas no Código de Trânsito Brasileiro possuem fins tributários. Afinal, para além da inspeção veicular, disposta no art. 104 do Código de Trânsito Brasileiro, não há na renovação do licenciamento mais do que uma consequência do recolhimento do IPVA – Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores. Questionável, portanto, a disposição, na medida em que revela a intenção do legislador de forçar o recolhimento do imposto por vias outras que não as próprias e permitidas.”

Diante de tudo o exposto, não há forma capaz de desafiar o Direito de Propriedade em razão do atraso no pagamento de Imposto, sobretudo, do IPVA. Ciente de que este mesmo contribuinte detém deveres sendo a principal fonte de sustento do Estado Democrático de Direito, através do pagamento de tributos, sejam eles impostos, taxas e contribuições – deve, como sujeito passivo na relação obrigacional tributária, promover o pagamento de tributos, quando ocorrer o lançamento do crédito tributário.

Contudo, propõe-se que a cobrança do tributo em tela se dê na forma estabelecida pela CRFB/88 e no Código Tributário Nacional de modo que o Estado se abstenha de subtrair – sem o devido processo legal –, de parcela exagerada do patrimônio, maior do que o esperado pelo contribuinte, o reduzindo a ponto de afetar seu mínimo existencial.

Na feliz passagem do Ilustríssimo Ministro Maurício Corrêa, que sepulta qualquer dúvida eventual na escorreita linha intelectiva proposta neste trabalho, tem-se, em excerto, que:“(...)Inaceitável, como visto, que o simples débito tributário implique apreensão do bem, em clara atuação coercitiva para obrigar o proprietário do veículo a saldar o débito. O ordenamento positivo disciplina as formas em que se procede à execução fiscal, não prevendo, para isso, a possibilidade de retenção forçada do bem. Correta a lei, portanto, ao obstar a ação estatal que claramente seria abusiva, ilimitando a sanção ao não licenciamento, tema afeto à regularidade do veículo para fins de circulação e regulado por lei federal.[6]


A inconstitucionalidade dessa sanção administrativa é patente e não subsiste se confrontada com os direitos fundamentais do contribuinte, que são severamente violados com a conduta de recolhimento do veículo por atraso no pagamento do tributo, vez que, a administração pública possui meios próprios e legítimos para efetuar a cobrança, devendo ser realizada sob a égide da Constituição e sobretudo, do devido processo legal.



A partir desta análise voltada para os princípios constitucionais, numa leitura sistemática, evitando que a prática administrativa, mesmo que completamente equivocada, se torne cotidiana, não parece restar dúvidas sobre a inconstitucionalidade e o completo desamparo jurídico existe no recolhimento do veículo pelo atraso no pagamento do Imposto sobre propriedade de Veículo Automotor, merecendo chancela o presente projeto de pesquisa.

[1] BALEEIRO, Aliomar. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR. Rio de Janeiro: Ed.Forense, 2010. p.293-314.


[2] PEREIRA, Paulo Sérgio Vélten. Por um processo civil comunicativo e dialógico. In: Revista de Direito Bancário e do Método de Capitais. Vol.69 ano 18. p.317-332. São Paulo: Ed. RT, jul-set 2015.


[3] Frise-se de passagem, que no caso do recolhimento do veículo por atraso no pagamento do tributo, não incidirá somente o tributo e a multa, mas, também, a diária do pátio para onde foi recolhido o veículo, e, para piorar, esses locais para onde são recolhidos os veículos não funcionam nos finais de semana e feriados, aumentando substancialmente os valores cobrados, ou seja, ocorre dupla ou mesmo tripla punição pecuniária sobre o mesmo fato.


[4] CARRAZA, Antonio Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 407


[5] MAMEDE, Gladston. IPVA – Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 173


[6] ADI 1654 AP. Relator: Ministro MAURÍCIO CORRÊA. DJe 19-03-2004 PP-00016 EMENT. VOL. 02144-01 PP-00252. 03 de Março de 2004

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